Isto ainda há-de ser qualquer coisa (III)

E então dei-me conta de estar no meio de qualquer coisa que não me dizia respeito. Aconteceu no momento de uma triangulação pouco plausível de factos: de um lado, intermitências indecifráveis e de outro, uma quase aversão a pedir distância higiénica sem razão aparente, ou, pelo menos, manifestamente exagerada, dadas as circunstâncias. Tudo isto, de repente, desenhou-me na mente preguiçosa uma outra espécie de triângulo, longe de equilátero e sem ângulos rectos; no dealbar dessa percepção quase me ri por ter esperado tanto e com tanta esperança; vi, num tal cenário, como devo ter sido, sem o saber, inconveniente e perturbador. Essas duas linhas, irregularmente tracejadas, nervosas, neuróticas até, têm um ponto de contacto que não me ocorreu antes, e podem bem definir um ângulo mais agudo do que supunha no meu alheamento e, tenho de admiti-lo, efectiva distância. Sabendo que os lugares não se conquistam – ou pertencem-nos ou não – tranquiliza-me ir conhecendo os que são meus, ou, dizendo melhor, aqueles a que eu pertenço, e identificar os outros a que não pertenço nem nunca virei a pertencer: este é o tipo de conhecimento que nos faz poupar energia e guardá-la para o nosso próprio caminho, o que na prática reduz ao mínimo o comprimento dos becos desnecessários (que também os há necessários, nem que seja para descansar um pouco). A quem, como eu, tem a mania da intervenção, custa ficar-se pelo passivo de ser-se espelho ou oratório ou muro das lamentações. Mas também é verdade que isto pode ser tão útil e efectivo ao outro como a mais empenhada das diligências. Porque a despeito de todas as metáforas, falar para alguém que permaneça calado é sempre preferível a falar para uma parede ou uma porta: estas nunca serão recipientes, mas tão só superfícies reflectoras. Por isto mesmo, não só é preferível, como desejável. Em certos casos, e mais naqueles em que a fala ascende do âmago e por isso resulta quase intraduzível para o universo alheio, tudo o que se possa dizer em resposta arrisca-se ao erro crasso, que faz mais dano do que benefício. Por isso, o retorno do silêncio torna-se a face terna da compreensão possível.

(c)2017 Jónatas Rodrigues